sábado, 22 de dezembro de 2007

Língua

Gosta de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar a criar confusões de prosódia
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores e furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?
E deixe os Portugais morrerem à míngua “Minha pátria é minha língua”
Fala Mangueira! Fala!
Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó
O que querO que pode esta língua?
Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas
E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas!
Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmem Miranda
E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate
E – xeque-mate – explique-nos Luanda
Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo
Sejamos o lobo do lobo do homem Lobo do lobo do lobo do homem
Adoro nomesNomes em ã
De coisas como rã e ímã
Ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã
Nomes de nomes como Scarlet Moon de Chevalier, Glauco Mattoso e Arrigo Barnabée
Maria da FéFlor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó
O que quer O que pode esta língua?
Se você tem uma idéia incrível é melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão
Blitz quer dizer corisco
Hollywood quer dizer Azevedo
E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo meu medo
A língua é minha pátria e eu não tenho pátria, tenho mátria e quero frátria
Poesia concreta, prosa caótica
Ótica futuraSamba-rap, chic-left com banana
(– Será que ele está no Pão de Açúcar?
– Tá craude brô
– Você e tu
– Lhe amo
– Qué queu te faço, nego?
– Bote ligeiro!
– Ma’de brinquinho, Ricardo!? Teu tio vai ficar desesperado!
– Ó Tavinho, põe camisola pra dentro, assim mais pareces um espantalho!
– I like to spend some time in Mozambique
– Arigatô, arigatô!)
Nós canto-falamos como quem inveja negros
Que sofrem horrores no Gueto do Harlem
Livros, discos, vídeos à mancheia
E deixa que digam, que pensem, que falem.

Língua - Caetano Veloso

Um comentário:

Ricardo Artur disse...

Esta é pra mim uma das obras-primas (e porque não obras-tias, obras-sobrinhas, obras-avós...) do Caetano.
É uma grande brincadeira, ou melhor jogo. Pois jogo é divertido, mas sério.
Tem regra, tem propósito e tem subversão da regra.
"– Ma’de brinquinho, Ricardo!? Teu tio vai ficar desesperado!"

Bom, ficar não ficou. Mas com certeza deve ter pensado "isso é coisa de ... "

;)