sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

CARTA A DANIEL PENNAC

Prezado Daniel Pennac,

Fiquei alguns segundos pensando em como iria começar essa carta e referir-me a você, senhor, caro, querido... Escolhi PREZADO, devido a não conhecê-lo, porém com certo grau de intimidade e prazer possibilitados na leitura do seu livro “Como um romance”.

Comecei a ler por recomendação da Mestra Jaqueline, do módulo de Leitura – Curso de Comunicação e Linguagem da PUC RJ, para o trabalho final que tenho de entregar amanhã bem cedo. Confesso que li em vários momentos, de formas diferentes – no ônibus, na fila do banco, na espera do avião, assistindo televisão etc. E por algumas semanas não conseguir avançar na leitura, pois estava bastante envolvida em outras coisas e principalmente com minha própria resistência.

Hoje tenho um limite, um fato – amanhã eu tenho que apresentar um trabalho que vale uma nota. Na data limite volto ao inicio do livro, o que parece não dar tempo.

Li todo o livro com tamanha intensidade e desejo despertados na aula anterior da Mestra Jaqueline com o filme “Alex e Emma”. Um romance que acontece a partir do encontro entre duas pessoas e a literatura – uma interação face a face diferente da nossa. E igual ao filme, o texto passou a fazer sentido quando comecei a representá-lo em minha vida.

A intenção despertada por um horizonte de expectativas proporcionou o encontro com você e suas redes de interlocutores, ilustrador, sumário, livros citados, tradutora - a alquimia proporcionada por esse livro aberto... Totalmente aberto para ser lido e vivido.

E logo de inicio, fala que ler não suporta o imperativo, convidando-nos a possibilidade de não ler. Eu não tenho que ler posso fazer outras coisas, brincar com minha filha, assistir a novela, conversar com meu marido, namorar, ler outro livro. A própria Mestra Jaqueline deu a possibilidade de fazer outras entregas. POSSO PARAR AGORA...JÀ!

Algo além da entrega do trabalho me instiga a continuar e a primeira interrupção acontece. Minha filha solicita: – Mamãe lê para mim? Quase disse NÃO! Estava lendo o meu livro e por lê-lo lembrei de um parágrafo que você diz.

“... Falávamos da necessidade de ler, mas estávamos lá, perto dela, no quarto dela, do que não lê”.

Minha filha Maria está completando 5 anos e descobrindo as letras, fonemas e palavras. No momento que me pediu para ler eu a olhei e disse: – Claro! Vá ao seu quarto e escolha o livro que você mais gosta e vamos ler juntas.

Enquanto ela escolhia o livro avancei na minha leitura e derrepente ela voltou e disse: - Mamãe, eu não quero ler nenhum livro, eu quero fazer um. Trouxe lápis, caderno canetas e me pediu ajuda para escrever “ERA UMA VEZ...”. Para minha surpresa escreveu praticamente sozinha, minha ajuda foi na pronuncia das letras e fonemas –É..rrrr...ÁÁ...ÚÙÚ..mamama...ÀÀÀ / V(Assopro com os dentes).. ÊÊÊ...zzzz.

Após escrever ERAUMAVEZ (sem separar as palavras) falou: - Uma menina que... (escrevendo com minha ajuda) e indaguei – Que o quê? Ela respondeu: - Calma! isso será na segunda página. A segunda página dizia: - Estava com sua amiga. E assim era a história, com muitos desenhos, cores e palavras. As primeiras palavras escritas.

Maria cansou e foi para uma nova interação na tela da TV – Bakardigans no Discovery Kids. Acredito de fato que a Televisão é uma nova interação e discordo da sua citação “Enquanto que a TV, e mesmo o cinema tudo é dado nada é conquistado, tudo é mastigado...”. Nos programas de TV e Cinema, igual ao livro também tem uma rede de sentidos, imagens e interlocutores – o Diretor, as Equipes, o posicionamento da câmera, o enquadro, figura e fundo, as ESCOLHAS. A literatura infantil é entremeada de imagens e outros significantes, que não a palavra escrita.

Nova interrupção – Maria, minha filha! Agora ela quer brincar, eu respondo – Agora não posso, preciso terminar de ler esse livro e fazer um trabalho para entregar amanhã. Ela perguntou: - Que trabalho é esse? Respondi: - Esse trabalho é parecido com seu Projeto Leitura, que você lê o livro e depois faz o trabalho para apresentar aos seus amigos e professoras. Ela imediatamente se lembra do trabalho que tinha de fazer e foi até a sua mochila pegar o seu livro. O livro dessa semana é “Dança na Praça” de Jonas Ribeiro. Eis um trecho:
“... Todos estão diferentes, tudo está mudado. Em poucos segundos, a cara do Sr. Oscar vai desemburrando e se abre num sorriso...”.

Eu li em voz alta, inventei uma musiquinha, e Maria perguntou: - A música está escrita aí? Apontando para o livro. E eu respondi: - Não Maria, a Mamãe que inventou. Quando acabou a leitura do livro, Maria pegou uma folha e desenhou os personagens: A Flor e o Zezinho, de formas diferentes - O Zezinho está calçado e Flor com franjas no cabelo. Maria se auto-retratou e identificando-se com os personagens. Similar ao filme “Alex e Emma” que na interação modifica o personagem.

- Que lindos eles ficaram! Indaguei. E Ela se foi mais uma vez para uma nova interação. Continuei na leitura, com outras várias interrupções, televisão ligada, computador, barulhos diversos. Tudo estava incluído na leitura afetiva e efetiva, na proximidade e intimidade com todos.

SILÊNCIO...

Desculpem-me preciso LER! Já era tarde, a hora passou depressa e mesmo com o cansaço do dia estava LIBERTA de amarras – Um presente! Lembrei do livro de Clarice Lispector “Uma Aprendizagem – Livro dos Prazeres”.

“Aí estava o mar, o mais ininteligível das existências não humanas. E ali estava a mulher, de pé, o mais ininteligível dos seres vivos... Ela e o mar. Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro. A entrega de dois mundos incognoscíveis feita com confiança com que se entregariam duas compreensões...”.

O prazer de ler é esse encontro de mundos incognoscíveis – essa fruição de alquimia. Seu livro me faz desejar, ter prazer, ensinar, aprender... E novamente minha filha chega.

- Mamãe, hoje aconteceu uma coisa, eu escrevi sozinha a palavra UVA, olha só.

Lembrei-me do trecho do livro que diz:

“Ela chega, abre a mochila, expõe suas proezas e repete palavras sagradas”. Palavras descobertas.


Perceber o encontro das letras, a similaridade dos sons dos fonemas, explicar o inesplicado – porquê o “QÊ” tem “U” no meio. Como é difícil o começo da escrita e leitura, descoberta que nos coloca diante de um mundo incognoscível.

“... Nem sempre era fácil. Um parto a cada sílaba. O sentido da palavra perdido no esforço de sua composição”.

Voltar, retornar, errar – a dor de continuar...

- É assim? É isso mamãe? No ritmo dela, espelhando as letras e continuando a VIVER!

Como você, Daniel Pennac, diz belamente:

“... Formávamos uma trindade (ato sagrado) Ela, a história e nós”.

E fiquei assim, parada por alguns minutos, sozinha com meus pensamentos, em pleno silenciar! Li o livro até o final e despertei vários sonhos e livros adormecidos dentro de mim. Essa é a primeira carta que escrevo, de muitas outras que virão e encerro com a frase descrita no livro:

“... Não se fará nunca um menino entender que a noite fica bem no meio de uma história cativante... Que é preciso interromper a leitura e ir se deitar...”.

Obrigada Daniel por essa leitura e despertar. Obrigada Mestra Jaqueline pela indicação da leitura, frases, filme e tudo que vivemos nessa sala de aula que transcendeu o seu espaço.

Um abraço,


3 comentários:

Tania disse...

Amei.

Ricardo Artur disse...

Eis que o silêncio se rompe num vendaval de palavras.
Belas palavras, subvertendo a ordem e métrica das convenções internetescas para expressar o maior fenômeno de todos: a vida.
Seu nome? Ana Cris.

Com isso só não digo que o tamanho do texto não é muito apropriado aos blogs por causa da qualidade das letras. Se for pra subverter, que seja com um belo texto como o seu.

A mestra citada,Jackie, também é especialista em subverter as conveções de textos para a internet, como no caso do forum de nosso grupo de pesquisa. Sorte nossa que seus longos textos valem a pena de serem lidos até o fim.

AnaCris disse...

Que maravilha de comentário professor Arthur!
Falar e expressar a vida é o que me faz mais feliz. Tocar alguém é melhor ainda.
Só é possível produzir assim por que existem pessoas como vocês.
Ana Cris