Achei nos pertences da minha graduação, bastante pertinente, então, divido:
Esta vida é um constante fluir. (vendo esta original observação pela melhor oferta, cartas para o editor). Tanto assim que eu ia escrever sobre as aventuras gastronômico-burocráticas que vivi na semana finda, mas a vida fluiu e desisti. Conto apenas que, no momento em que escrevo, não temos gás aqui em casa, porque a companhia de gás do Rio está fazendo uma conversão. Botou aviso no elevador, parecendo até que é empresa séria, com a comunicação dos horários de interrupção e visitas de técnicos. Era para ter tudo acabado na segunda-feira passada mesmo, mas, até agora, temos enfrentado quentinhas e botecos com galhardia, porque nem gás nem técnicos apareceram, é claro. Vi um carro a serviço da companhia, fiz uma pergunta sobre a volta do fornecimento a um dos técnicos, ele me olhou como se eu acabasse de ter tido uma crise de flatulência explícita e me respondeu desdenhosamente que uma hora dessas voltava. Não tive melhor sorte com a burocracia, que me fez pular de telefone em telefone ouvindo musiquinhas e chamadas que não atendiam, para, depois de meia tarde e uma manhã de trabalho, ser informado de que uma hora dessas o gás voltaria e os técnicos apareciam. Mas é até bom que eu não fale mais, senão acabo processado e indo para a cadeia, no lugar de diretores, técnicos e funcionários da referida empresa, que depois ainda se queixam de má vontade, se não encontram receptividade pública para suas reivindicações de aumentos de tarifa ou salários. Que seiscentos mil demônios freqüentem todas as noites os sonhos deles (mas com gás para as fornalhas) é tudo o que carinhosamente lhes desejo.
Também ia falar do feriado de amanhã, data em que celebramos a redenção nacional trazida pela proclamação da República. Já pensaram que vergonha, principalmente ali perto da Estátua da Liberdade da Barra da Tijuca, a gente ser monarquia, em vez de república, como os americanos? Teríamos um imperador de barbas brancas e pantufos, que vexame. E não teríamos aproveitado a oportunidade para exterminar alguns milhares de nordestinos, essa praga nacional (eu mesmo acho que vou abdicar da nacionalidade baiana; vou ser do Amapá, como o Dr. Sarney), lá em Canudos. E permaneceríamos no atraso permanente a que a monarquia nos condenava e de que a República nos salvou, como qualquer um pode ver. Para não falar que, se o problema é imperador, nosso presidente preenche esse papel com muito mais vocação que Pedro II, além de não escrever sonetos eméticos (já escreveu outras coisas, mas não é justo falar nelas, pois ele mesmo já disse para as esquercemos, no que, aliás, está coberto de todas as razões possíveis). E, mais importante que tudo, onde ficaria o feriadão, que seria de nós sem o feriadão trazido ao nosso colo por essa radiosa segunda-feira? O 15 de novembro é um barato completo.
Mas a vida, em seu perpétuo fluir, obriga o operoso e militante jornalista a lembrar que hoje é Dia da Alfabetização. É hora, depois do MOBRAL, das mudanças revigorantes do ensino público e de outras iniciativas vitoriosas no campo da alfabetização (será "alfabetisação"? nunca se sabe, é o mal desta língua primitiva que falamos, em vez de inglês, que é língua de gente - tremenda besteira, isso de se escreverem umas coisas com "s", outras com"z", em vez de nos mirarmos na ortografia inglesa, muito mais coerente e racional), de fazer algumas críticas à situação da alfabetização e da leitura entre nós. Por exemplo, lê-se muito pouco aqui, todo mundo sabe disso. E a culpa principal, todo mundo também sabe, é o preço do livro. Livro é muito caro. Sim, é caro também em outros países, mas aqui devia ser mais barato, exatamente por causa dos nossos problemas de alfabetização. Não valem argumentos falaciosos, como o que vou citar, é tudo enrolação da indústria editorial, esse dragão ávido de lucros pantagruélicos. Por exemplo, um CD, ou uma caixa de CDs, custa mais caro do que muitos livros. Além disso, para se ouvir um CD, necessita-se de equipamento, preferivelmente o mais caro possível, para uma reprodução de boa qualidade. Livro, no máximo, exige óculos. No entanto, quando um livro aqui vende 20 mil exemplares, o editor manda rezar uma missa de ação de graças e os CDs vendem rotineiramente centenas de milhares de exemplares (exemplares, não, cópias; é asim que se fala em inglês), quando não milhões. Mas não é justificativa, o livro continua caro e é por isso que se ouve CD e não se lê livro.
Outra coisa é relacionada com a própria língua. Quem quer ler num diabo de uma língua que ninguém entende direito, de tão complicada e destituída de capacidade de expressão? Assim de cabeça, posso citar vários casos em que sua lógica e coerência obrigam quem a usa a recorrer ao inglês, ou mesmo a abolir vocábulos como "cujo", do qual ninguém tem necessidade mais. Quem precisa ser pernóstico e falar "a moça cujo pai eu conheci", quando "a moça que eu conheci o pai" é tão mais natural e claro? Quem precisa se referir a "questões corporativas" é tão mais chique e parece bem melhor aos leitores da "Fortune"? Quem precisa usar flexões verbais arrevesadas como "eu irei", em lugar do mais simples e parecido com inglês, "eu vou ir", como cada vez mais fala a juventude? Por que "houve problemas", que está na cara que é mais certo - embora, mas isso é outra incoerência, ninguém diga "Hão problemas"? Quem precisa de verbos tão feiosos quanto "pôr" e "botar", quando é bem mais elegante a galinha colocar um ovo? Por que "prejudicar", que confunde os americanos que inexplicavelmente querem aprender português, se "penalizar" está aí mesmo, embora usado erradamente há tanto tempo? Enfim, quem precisa da língua portuguesa? A vida flui, se globaliza e, neste dia tão significativo, vamos nos alfabetisar (alfabetizar? Corrija aí, leitor caturra). Let us teach ourselves how to read. Tão mais rico e menos pedante do que "alfabetizemo-nos".
(João Ubaldo Ribeiro).